Quando meu pai resolveu reformar a casa, ou melhor, fazer uma
cozinha grudada na velha casa de madeira, eu queria muito participar e ajudar na
construção, no entanto, naquela época menina não podia permanecer onde ficavam homens
porque “era coisa feia e já iria ficar falada pelos vizinhos e parentes”, sem
contar que levaria uma surra de cipó se desobedecesse.
O medo de tudo aquilo me fazia ficar de longe observando os
acontecimentos, enquanto isso, varria o quintal com vassoura de guanxuma que eu
mesma cortava no mato e a montava _condição essa para que pudesse fazer corrida
descalça em volta da casa e sentir a liberdade do vento no rosto. Amarrava-a
com arame em um cabo de vassoura e neste firmava-o com um prego. Gostava muito
de sentir a terra fria da manhã nos pés mesmo sujando-os e deixando as unhas cheias
de terra vermelha, as quais dariam muito trabalho para limpar na hora do “banho
de bacião”, sem contar que ainda ouviria uma grande bronca da mãe no final da
tarde.
Ficava eu por ali, de olho comprido, meio de longe como se
estivesse distante do grandioso evento.
Vi os caibros sendo colocados, as tábuas pregadas, as telhas jogadas
pelos carpinteiros e pedreiros para cobrirem a cozinha. Vi o chão sendo batido com
latas pesadas, vi os meninos pisando e
pulando naquela terra escura previamente colocada, o que aguçava ainda mais a
minha vontade de fazer o mesmo. Os dias iam passando, a construção tomando
forma e nada do tão falado “ladrilho vermelho” que teria na cozinha... Minha
imaginação voava: seria passado cola com lápis de cor no chão? Seria cera Canário vermelha misturada com trigo
feito massa de pão? Seria um pano vermelho esticado? Ou pó de serra misturado
com colorau do quintal ? Que nada. Os dias corriam e no meu silêncio a curiosidade,
a ansiedade e as dúvidas também.
Fiquei de olho, as horas pareciam intermináveis. Começou a
chover, e assim continuou por vários dias. Tudo parado. Sem pedreiro, sem
construção, sem cozinha. A chuva caindo, o barro lá fora me esperando para ser
pisado, amassado, para ser sentido por mim e eu a ele. Meus pés sentiam falta
da terra. Olhava pela janela de madeira toda a enxurrada correndo, deslizando
pelo quintal com uma cor vermelha misturada com marrom escuro ficando um pouco
mais clara depois. Sem poder sair, brincava de boneca ouvindo o barulho da
chuva no telhado da sala. Uma semana depois o sol amarelo apareceu num lindo
azul. Ainda assim, construção parada. Mais um dia e uma noite de agonia.
No dia seguinte vi um homem misturando areia, cimento,
pedrinhas e outras coisas numa caixa grande de madeira no chão, ali perto
mesmo, então, rapidamente fui perguntar o que era aquilo, quando o pedreiro
respondeu que seria o piso da cozinha saí correndo para que ninguém me visse.
Fiquei satisfeita e aliviada: curiosidade sanada. Mas não era vermelho. Eu
teria sido enganada até o momento? Ele estaria enganando meu pai?
Na outra manhã o pedreiro estava ali, jogando tudo aquilo no chão da cozinha e esparramando um pó vermelho. Era o
“vermelhão” ganhando vida... O meu coração disparava de tanta alegria! Não
sabia o que fazer, se ficava do alto do pé de laranja olhando mais um pouco ou
se sentava no balanço que havia na mangueira do quintal, só que continuaria no meu
posto de observadora. Na verdade, escondia a grande vontade de mexer no
“vermelhão” também. Engolia com meus olhos toda aquela celebração que acontecia na minha
frente.
No final do dia chegara a boa notícia: cozinha de chão
vermelho pronta!!!Expectativa, agonia, bagunça de vontades na cabeça e no coração.
Pedreiros para suas casas. Minha grande chance havia chegado. Coração disparado
novamente. Lá fui eu entrar na nova cozinha. Que decepção! Fiquei frustrada.
Fiquei brava ao encontrar a porta trancada, tábuas pregadas em forma de xis para que ninguém ali entrasse...
Resistência à tentação. Quanto sofrimento! Tudo muito bem guardado.
Mas... lembrei-me de que havia uma alta janela lateral e
rapidamente pensei no que faria para pular. Fui ao fundo do quintal, peguei uma
escada que os homens haviam deixado, encostei-a na parede debaixo da janela e
subi morrendo de medo de que alguém me visse. Ao chegar na soleira empurrei a janela
com as mãos e facilmente se abriu pois estava apenas encostada e sem a taramela.
Uma grande realização eu senti. Ninguém ali para me ver. Foi pura felicidade!
Um sorriso grande saiu de dentro mim preso e solto com uma respiração ofegante.
Eu me senti um verdadeiro balão de aniversário prestes a explodir. Sentei na
soleira, virei minhas pernas para o lado de dentro da cozinha e ali fui
descendo com os pés escorregando pela
parede, bem devagar até pisar no chão.
Quando senti aquele
piso geladinho geladinho, quando senti meus pés afundando suavemente foi
maravilhoso... Que delícia! Que alegria! Fiz a festa. Andei pra lá e pra cá. Virei
bailarina, dancei, rodopiei, cantei, ri comigo mesma e de mim, ri daquela
realização, ri da minha ousadia e da minha coragem, tinha valido a pena esperar.
Já estava anoitecendo e eu tinha que sair dali. Voltei para a parede, para a
janela e para a escada, deixei a janela bem encostada e desci os degraus
silenciosamente e rapidamente antes que percebessem minha ausência. Fui para o
interior da casa, certa de que ninguém me vira. Tomei meu banho bem depressa,
dispensei o jantar e rapidamente fui para minha cama. Dormi o sono dos
inocentes a noite toda...
Olhou sério para mim. Tremi. Perguntou se eu havia entrado na
cozinha, pisado no “vermelhão”. Tremi. Como ele poderia saber se ninguém tinha
me visto? - pensei. Mal consegui engolir
o pão que estava comendo. Balancei a cabeça em sinal de “não”. Gaguejei. Não
conseguia falar.. Ele disse que havia marcas de pés no chão da cozinha e na
parede, que alguém teria pisado antes da hora, antes de secar o piso e que as
marcas embora pequenas não mais sairiam
do chão.. Apenas arregalei meus olhos e
nada disse. Calafrios, disparos do coração dessa vez ainda mais fortes. Senti a
garganta trancar, senti a voz sumir, fiquei muda, estática, nem me mexia na
cadeira alta onde os pés nem tocavam o chão e quietinhos se balançavam de
susto. O que fazer naquele momento? Ao olhar para os meus pés eu me assustei:
eles ainda estavam da cor do vermelhão... Aí eu entendi que minha façanha e meu
segredo tinham sido revelados.
As marcas ficaram nos pés por pouco tempo, no chão por muitos anos e na lembrança pra
sempre.