segunda-feira, 14 de abril de 2014

PÉ VERMELHO 1 ( crônica)




Pé Vermelho 1

Quando meu pai resolveu reformar a casa, ou melhor, fazer uma cozinha grudada na velha casa de madeira, eu queria muito participar e ajudar na construção, no entanto, naquela época menina não podia permanecer onde ficavam homens porque “era coisa feia e já iria ficar falada pelos vizinhos e parentes”, sem contar que levaria uma surra de cipó se desobedecesse.

O medo de tudo aquilo me fazia ficar de longe observando os acontecimentos, enquanto isso, varria o quintal com vassoura de guanxuma que eu mesma cortava no mato e a montava _condição essa para que pudesse fazer corrida descalça em volta da casa e sentir a liberdade do vento no rosto. Amarrava-a com arame em um cabo de vassoura e neste firmava-o com um prego. Gostava muito de sentir a terra fria da manhã nos pés mesmo sujando-os e deixando as unhas cheias de terra vermelha, as quais dariam muito trabalho para limpar na hora do “banho de bacião”, sem contar que ainda ouviria uma grande bronca da mãe no final da tarde.

Ficava eu por ali, de olho comprido, meio de longe como se estivesse distante do grandioso evento.
Vi os caibros sendo colocados, as tábuas pregadas, as telhas jogadas pelos carpinteiros e pedreiros para cobrirem a cozinha. Vi o chão sendo batido com latas pesadas,  vi os meninos pisando e pulando naquela terra escura previamente colocada, o que aguçava ainda mais a minha vontade de fazer o mesmo. Os dias iam passando, a construção tomando forma e nada do tão falado “ladrilho vermelho” que teria na cozinha... Minha imaginação voava: seria passado cola com lápis de cor no chão? Seria cera Canário vermelha misturada com trigo feito massa de pão? Seria um pano vermelho esticado? Ou pó de serra misturado com colorau do quintal ? Que nada. Os dias corriam e no meu silêncio a curiosidade, a ansiedade e as dúvidas também.
Fiquei de olho, as horas pareciam intermináveis. Começou a chover, e assim continuou por vários dias. Tudo parado. Sem pedreiro, sem construção, sem cozinha. A chuva caindo, o barro lá fora me esperando para ser pisado, amassado, para ser sentido por mim e eu a ele. Meus pés sentiam falta da terra. Olhava pela janela de madeira toda a enxurrada correndo, deslizando pelo quintal com uma cor vermelha misturada com marrom escuro ficando um pouco mais clara depois. Sem poder sair, brincava de boneca ouvindo o barulho da chuva no telhado da sala. Uma semana depois o sol amarelo apareceu num lindo azul. Ainda assim, construção parada. Mais um dia e uma noite de agonia.

No dia seguinte vi um homem misturando areia, cimento, pedrinhas e outras coisas numa caixa grande de madeira no chão, ali perto mesmo, então, rapidamente fui perguntar o que era aquilo, quando o pedreiro respondeu que seria o piso da cozinha saí correndo para que ninguém me visse. Fiquei satisfeita e aliviada: curiosidade sanada. Mas não era vermelho. Eu teria sido enganada até o momento? Ele estaria enganando meu pai?
Na outra manhã o pedreiro estava ali, jogando  tudo aquilo no chão da cozinha e  esparramando um pó vermelho. Era o “vermelhão” ganhando vida... O meu coração disparava de tanta alegria! Não sabia o que fazer, se ficava do alto do pé de laranja olhando mais um pouco ou se sentava no balanço que havia na mangueira do quintal, só que continuaria no meu posto de observadora. Na verdade, escondia a grande vontade de mexer no “vermelhão” também. Engolia com meus olhos  toda aquela celebração que acontecia na minha frente.
No final do dia chegara a boa notícia: cozinha de chão vermelho pronta!!!Expectativa, agonia, bagunça de vontades na cabeça e no coração. Pedreiros para suas casas. Minha grande chance havia chegado. Coração disparado novamente. Lá fui eu entrar na nova cozinha. Que decepção! Fiquei frustrada. Fiquei brava ao encontrar a porta trancada, tábuas pregadas em forma de xis para que ninguém ali entrasse... Resistência à tentação. Quanto sofrimento! Tudo muito bem guardado.

Mas... lembrei-me de que havia uma alta janela lateral e rapidamente pensei no que faria para pular. Fui ao fundo do quintal, peguei uma escada que os homens haviam deixado, encostei-a na parede debaixo da janela e subi morrendo de medo de que alguém me visse. Ao chegar na soleira empurrei a janela com as mãos e facilmente se abriu pois estava apenas encostada e sem a taramela. Uma grande realização eu senti. Ninguém ali para me ver. Foi pura felicidade! Um sorriso grande saiu de dentro mim preso e solto com uma respiração ofegante. Eu me senti um verdadeiro balão de aniversário prestes a explodir. Sentei na soleira, virei minhas pernas para o lado de dentro da cozinha e ali fui descendo com os  pés escorregando pela parede, bem devagar até pisar no chão.
Quando senti aquele piso geladinho geladinho, quando senti meus pés afundando suavemente foi maravilhoso... Que delícia! Que alegria! Fiz a festa. Andei pra lá e pra cá. Virei bailarina, dancei, rodopiei, cantei, ri comigo mesma e de mim, ri daquela realização, ri da minha ousadia e da minha coragem, tinha valido a pena esperar. Já estava anoitecendo e eu tinha que sair dali. Voltei para a parede, para a janela e para a escada, deixei a janela bem encostada e desci os degraus silenciosamente e rapidamente antes que percebessem minha ausência. Fui para o interior da casa, certa de que ninguém me vira. Tomei meu banho bem depressa, dispensei o jantar e rapidamente fui para minha cama. Dormi o sono dos inocentes a noite toda...
Acordei tarde após aquela noite tranquila. O pão estava na mesa e seu cheiro de assado permanecia no ar, como também o cheiro do café com leite fervido. Sentei à mesa, até então na sala, e saboreei sem pressa o meu pão com manteiga e doce de leite. Tomei uma xícara de leite com café quentinho, sossegada, até que meu pai chegou muito bravo. Que sufoco!
Olhou sério para mim. Tremi. Perguntou se eu havia entrado na cozinha, pisado no “vermelhão”. Tremi. Como ele poderia saber se ninguém tinha me visto? -  pensei. Mal consegui engolir o pão que estava comendo. Balancei a cabeça em sinal de “não”. Gaguejei. Não conseguia falar.. Ele disse que havia marcas de pés no chão da cozinha e na parede, que alguém teria pisado antes da hora, antes de secar o piso e que as marcas  embora pequenas não mais sairiam do chão.. Apenas arregalei meus olhos  e nada disse. Calafrios, disparos do coração dessa vez ainda mais fortes. Senti a garganta trancar, senti a voz sumir, fiquei muda, estática, nem me mexia na cadeira alta onde os pés nem tocavam o chão e quietinhos se balançavam de susto. O que fazer naquele momento? Ao olhar para os meus pés eu me assustei: eles ainda estavam da cor do vermelhão... Aí eu entendi que minha façanha e meu segredo tinham sido revelados.
As marcas ficaram nos pés por pouco tempo, no  chão por muitos anos e na lembrança pra sempre.