Pé Vermelho 2
Morávamos na zona rural, mais propriamente
num lugarejo chamado Rio Azul, próximo à cidade Montanha Alta do norte do Paraná.
Eram tempos de sonhos e muita fartura. Meu pai tinha uma casa de “secos e
molhados”, onde vendia produtos alimentícios para os trabalhadores que moravam
nos sítios arredores. Durante a semana homens, mulheres e crianças da região
eram boias-frias ou meeiros no cultivo do café ou trabalhavam na plantação de milho e arroz, e,
nos finais de semana iam a Rio Azul para fazer compras e abastecer a despensa.
Alguns faziam suas compras somente no final de cada mês. A venda ficava cheia.
Os homens com chapéus de palha, roupas de trabalho ainda, confeccionadas de sacos
brancos de açúcar, alvejados ao sol para que ficassem branquinhas, mesmo sabendo
que depois do trabalho voltariam cheias de terra para casa. Eles usavam botinas
amarelas também, fumavam cigarros de palha feitos com fumo de corda comprado na venda do
meu pai. Eu achava engraçado o fato de que além de fumar, eles pegavam o fumo
de corda, puxavam umas lascas e encostavam nas narinas só para espirrar. Meu pai dizia
que era para tirar a poeira grudada no nariz. Ali eles compravam, fumavam e
bebiam um pinguinha no copo de dose antes de voltarem para suas casas. Era um
ritual. E assim, passavam a tarde comprando sal, açúcar por quilo, de
preferência cristal, porque naquela época o refinado era caríssimo. Na mercadoria
levavam, inclusive, macarrão e massa de tomate pois seria mais fácil para fazer
a refeição, ou melhor, a macarronada no domingo, que acompanhava arroz, feijão cozido
com pele de porco e torresmo, mandioca frita com colorau e grandes pedaços de
carne de porco também fritos, previamente guardados em latas de banha. A compra
do pacote de trigo era primordial para o feitio do pão caseiro, preparados, fortemente
amassados pelas esposas, no qual colocavam gordura de porco e, à vezes, semente
de erva doce para ficar mais saboroso, depois, aquecidos pelo sol para que crescessem rapidamente, seriam assados no
forno à lenha em folha de bananeira.
Na “venda”, os trabalhadores contavam seus
causos, bebiam a pinguinha, jogavam o finalzinho da pinga no chão, que diziam
ser para o “Santo”, em seguida cuspiam
do lado de fora do armazém. Acontecia ali também a compra e a venda de porco,
galinha, peneira de café, serrote, machado, lamparina, lampião, cavadeira,
arame farpado para fazer cerca, prego, chuveiro “Tiradentes”, bacia, prato de
esmalte, balde de alumínio, conhaque, groselha, inclusive sal grosso para dar
às vacas, a fim de que bebessem muita água e produzissem muito leite.
Ao final da tarde, quando a música da Ave
Maria tocava no alto-falante da igreja os homens preparavam-se para ir embora.
Meu pai colocava a mercadoria no Jeep Willis azul cujo volante era enorme e meu
lugar preferido para sentar e me balançar. Como era emocionante! Em seguida, eu me sentava no
banco do carona e acompanhava a entrega
nos sítios da região. Passávamos por carreadores estreitos, de chão batido,
cheio de sombra das árvores onde a brisa do final da tarde tornava
o vento mais frio e delicioso, eu com o braço esticado para o lado de fora da
janela, tentava segurar o vento com as mãos. Quando chegava no destino de
entrega, eu descia do carro e ia abrir a porteira ora de madeira ora de arame.
Primeiro eu passava pelo mata-burro e entrava no sítio pois, na maioria das
vezes a porteira ficava fechada pelo lado de dentro. Depois, fechava e ia
correndo de pé no chão atrás do Jeep até chegar na casa da família que receberia
a mercadoria, por sinal, sempre numerosa: avós, filhos, genros, noras, netos
todos num mesmo casarão. Às vezes, o comprador ia conosco e às vezes ficava até
mais tarde na vila. Ao chegar na casa eu ajudava a entregar as coisas também,
auxiliando meu pai e as crianças que iam correndo retirar a mercadoria do
carro. Apareciam aquelas mulheres com vestidão rodado na maioria da cor cinza,
de lenço na cabeça e avental, e, os meninos
vestidos de calção e camisa feitos em
casa, também de saco de açúcar, costurados em máquina manual Vigorelli,
marca famosa naquela época. As meninas usavam vestidos estampados,
floridos, sem manga, franzidos na cintura . Todo mundo igual, a roupa era feita
do mesmo tecido comprado por peça fechada na loja da cidade... Os meninos e as
meninas corriam descalços sentindo a terra maravilhosa nos pés. Era bonito ver
tudo aquilo acontecendo .
As casas eram de quatro águas, de madeira,
janelas com taramelas e portas com trancas só do lado de dentro para ter
segurança à noite. Quando saiam durante o dia as mesmas só ficavam encostadas e
amarradas com uma fitinha de pano, ninguém mexia nas coisas alheias e os
vizinhos cuidavam uns das casas dos outros, no entanto, alguns gostavam de
fechar a porta com corrente e cadeado. Do lado de fora as paredes eram de
peroba e não eram pintadas, do lado de dentro eram brancas mas não de tinta e
sim por serem lavadas com bucha de aço, água de soda cáustica com sabão de
soda, anteriormente utilizada na lavagem e na fervura das roupas brancas
utilizadas na lida do café. As mulheres passavam, inclusive, cinza com
pano umedecido para melhor fixação na parede, num movimento de cima para baixo
a fim de que não ficasse nenhum risco ou marca de jeito contrário.
Jornais eram colocados nos vãos da parede, onde havia frestas para que o vento
não entrasse, e, para a decoração, papéis de presente coloridos e flores de
calendário eram pregados com tachinhas deixando o ambiente rústico e
simples mais bonito. Havia também, perto do fogão à lenha, de
tijolo, arame na parede onde as tampas de alumínio ficavam penduradas e com um brilho inigualável, e próximo a elas,
as panelas extremamente brilhantes. O chão da cozinha então, numa limpeza
indescritível. Sem assoalho, terra vermelha varrida, sem nenhum cisco e bem batida.
Nos quartos os colchões eram de enchimento de palhas de milho secas, bem
desfiadas e sem o sabugo, os travesseiros eram muito fofos feitos com painas
colhidas da paineira, sem as sementes. Lençóis sempre brancos, fronhas também
feitos com artigo de saco de açúcar.
À tarde, enquanto se costurava as vestimentas e toda a família ia para a
roça, a dona da casa ficava sozinha para fazer os afazeres domésticos e aí
fazia também seus tapetes de retalhos coloridos e as bonecas de pano para as
netas, deixando nelas a marca do carinho de suas mãos. Meninos e meninas menores
se respeitavam, dormiam na mesma cama grande apesar das brigas pela manta de lã,
dos puxões de cabelos e beliscões. O cuidado era recíproco e as doenças também.
Era rápido o contágio de gripe, sarampo, conjuntivite ( dor de olhos), caxumba,
varicela e outras doenças devido à proximidade uns dos outros. Se um “pegava”
todos “pegavam” mas todos ficavam imunes também. No entanto, a maioria das
dores e doenças se resolvia com os chás caseiros das plantas medicinais
plantadas ao redor da casa, o socorro
para a hora do apuro. No quintal havia também as lindas roseiras, as folhagens
vermelhas em formato de coração, as palmas, os chapéus de capitão que atraiam as
belas borboletas que davam um colorido especial e impressionante no final da
tarde contrastando com a luz sol.
No caminho de volta para casa, eu e meu
pai ficávamos a observar o pôr do sol ao longe. Enquanto o sol ia baixando, as
nuvens iam mudando de cor, de um laranja lindo passava para um vermelho
forte escuro e por fim tudo ia ficando cinza, as nuvens no céu cada vez mais pareciam
pequenas montanhas perdidas no ar, na imensidão... Um
silêncio de paz e de companheirismo invadia nós dois no longo caminho...
A noite de sábado chegava devagarinho com
histórias de assombração, de fantasmas e piar de coruja. Noite de passear na casa
de alguma família da redondeza. Lá, uma mesa cheia de bolos, chá, leite quente
e café, bolacha caseira e doce de abóbora sempre esperava pelas pessoas que iam
rezar o terço. Os adultos se revezavam na reza dos Mistérios enquanto as
crianças brincavam de passar anel, de esconde-esconde e ciranda no
terreirão de café. Os grãos de café, espalhados para secarem durante o dia, à
noite ficavam amontoados e cobertos com encerado para não pegar a umidade, o
que deixava a criançada livre para correr, pular corda, brincar e saborear as
comilanças sob a luz do lampião pendurado no canto de fora da tulha. Ali, em
meio à vida simples do campo, a infância feliz ia sendo tecida dia após dia,
lua após lua, sol após sol...
Aos domingos eu ia à missa pela manhã,
ouvia o padre falar de pecado e de amor, de culpa e de perdão. Rezava, cantava
mas não entendia bem o que ele queria dizer. Ao chegar em casa, almoçava com
meus irmãos, meu pai e minha mãe. Depois ia para a casa da avó, num
sítio. Brincava até cansar, subia no curral, nas laranjeiras, arranhava
os braços e as pernas com os espinhos, pisava o barro da mina, escorregava no
barranco do rio, balançava nos galhos da parreira e virava cambalhotas. Corria
do boi Tesouro, jogava fubá aos porcos no chiqueiro, colhia ovos no ninho
pendurado na árvore, sempre com o cuidado de deixar o ovo mais antigo e sujo
para servir de indez às galinhas, jogava milho para elas e quebrava milho no
pilão para dar aos pintinhos. E ali eu ficava.
Na segunda feira todos se levantavam cedo
na casa da avó Maria. Quando os galos começavam a cantar, a vó abria as
janelas e ia fazer o café no coador de pano com água fervida no fogão à lenha, deixando
sempre o bule de café na chapa quente para que não esfriasse durante o dia, e,
na brasa eu assava milho verde deixando
um cheiro gostoso pela casa. Meus tios e primos e primas maiores iam cedo para
a roça, para colher mais um pouco de café dos pés de altas copas e folhas
verdes escuras brilhantes, cheios de frutos vermelhinhos e doces. E para os
baixinhos, a companhia de uma escada. Minha tia ia para o curral tirar leite das
vacas e soltar os bezerros, meu avô ia com a carroça buscar cana na região para
dar ao pouco gado do curral. No sítio o almoço é muito cedo, sendo assim, minha
avó preparava as marmitas, enrolava nos guardanapos de pano, amarrava bem para
não cair e dava para eu levar a quem estivesse trabalhando. Enquanto eles almoçavam e conversavam, eu
ficava sentada à sombra do cafezal ouvindo suas histórias dos namoricos do
domingo anterior. Histórias de tocar de mãos às escondidas, de olhares
disfarçados, de beijos roubados atrás da igreja, de pedidos de namoros aceitos,
de amores proibidos e impossíveis. Após, eles descansavam enquanto eu levava as
marmitas vazias de volta para a vó, descia
o morro correndo e pulando entre as folhas ainda úmidas e pisando na
terra fresca, cantando e sorrindo para o alto, para a natureza e para a vida. No
caminho, passava pela mina borbulhante de água geladinha, pelo riozinho perto
do bambuzal, olhava os lambaris e ouvia o barulho da pequena cachoeira dali
distante encerrando mais um final de semana muito feliz.
Ivete Luz