Ai, Senhor!
Quando dona
Santana chegou em nossa casa, eu não estava. Foi num momento um tanto dolorido,
pode-se assim dizer, pois eu estava no hospital passando por uma cirurgia na
coluna lombar e quando saí de lá eu já a encontrei bem inteirada com o serviço
em minha casa.
Era a diarista
que viera me auxiliar durante uns
tempos, por indicação de uma prima, e eu
só fui conhecê-la depois do bonde andando, na minha convalescência. E que
convalescência! Dor, muita dor. Como diria meu finado pai : “Já era previsto”. As coisas iam seguindo seu ritmo: eu sem
andar e dona Santana lá, trabalhando. Uma senhora de uns sessenta anos, meio cheiinha, alta, branca, de cabelos
longos pintados de preto e sempre enrolados
feito coque, dentes meio pontudinhos para frente fazendo biquinho ao
falar, pessoa de confiança como se diz
na linguagem das patroas, no caso eu, compulsoriamente por força da situação.
Seu jeito de andar chamava sempre a atenção e não me lembro de um dia sequer não
tê-la visto andando com as mão nas costas. Aí me preocupei. Eu daquele jeito e
ela também com semelhante problema, pensei, pensei, fiquei com aquilo na minha cabeça: “E agora?”, até que perguntei se
ela sofria de alguma doença na região lombar
e dona Santana, sempre puxando o “r” do falar costumeiro do interior, respondeu
que não, que era costume mesmo.
Tudo ia bem, pelo menos eu achava. Os dias
foram passando e cada vez que ela chegava no portão já implicava com o latido
da cachorra e a recíproca era verdadeira. Como eu ia dizendo, ela era
engraçada, a mesma cena todos os dias, com as mãos nas costas e implicando com
a cachorra a tal ponto que meu dog, como é próprio da raça, usou de seu
instinto de defesa e caça: atacou-a por trás mordendo seu calcanhar, a briga
era até bonita de se ver não fosse meu
estado. Eu fui ficando numa situação difícil pois tinha que sair da cama com
dor para separar a briga de dona Santana com uma poodle toy, já idosa também.
Lá ia dona Santana: limpava a casa e
reclamava da vida toda vez que via alguém se aproximando, repetindo sempre “Ai, Senhor”. Interessante
foi quando ela invocou que tinha que rezar por mim, para curar a minha dor e me
recuperar logo, sair daquele estado,
enfim. Só me recordo que foi água benta pra cá, água benta pra lá... e eu tomei
tudo, confesso, tudinho, senão ela ficava muito brava. Acamada eu continuava.
Num outro dia
ela cismou com meu filho rapaz. Dizia-lhe
que tinha que “estar com o Senhor”, e
falou “Ai, Senhor, você tem que rezar, vou marcar para você ir no retiro de
oração, vai ser bom, tem que se abençoar, é só três dias rezando “, como era de
se esperar, no dia seguinte trouxe a ficha de inscrição, montou guarda, não deu
trégua, e ele foi... “Ai, Senhor”.
Começamos a
perceber que ela não tomava o café da manhã quando chegava para trabalhar, perguntamos
o porquê e ela disse que tinha o seu, não
acreditamos mas para nossa surpresa dona Santana carregava uma micro garrafa de
café e tomava o seu às escondidas várias
vezes por dia, até hoje não consegui entender o porquê daquela atitude, mas ...“Ai,
Senhor”.
Esta senhora trabalhava
em várias casas, segundo dona Santana porque se
ficasse em uma só casa se cansria de ver as
mesmas pessoas todos os dias e também porque precisava de mais dinheiro, mesmo sendo
aposentada e o marido idem, porém, os remédios eram caros, alegava.. Com o
tempo passou a chegar mais tarde e cada
vez mais tarde, mais briga com a cachorra, mais
mãos nas costas e mais “Ai,
Senhor”. Acontece que quando dava seis
horas da tarde ela ficava apavorada por não ter
concluído o serviço, contudo, não poderia jamais chegar atrasada para a
missa das sete e meia, caso contrário, não seria abençoada para trabalhar no
dia seguinte. Compreendemos dado à idade e
blá ... blá...blá... Diante de tanto apavoramento, alguém sempre a
levava de carro até a igreja que ficava
próxima a sua casa, e é lógico, ela com
o dinheiro da passagem de volta pago e dentro da bolsa... “Ai, Senhor”.
O tempo
foi passando e a rotina da dona Santana também. Foi ficando divertido. Não nos incomodávamos
mais. No entanto, surpresa maior aconteceu quando ela pediu para trocar o dia
da faxina para toda quarta –feira. Pedido aceito, de “comum acordo de ambas as
duas partes entre as duas pessoas conforme o combinado”, disse dona Santana. Começamos a perceber que
novamente à mesa ela não nos acompanhava, no café da manhã já havíamos compreendido, mas durante o almoço?!! Novas investigações...novas perguntas... novas surpresas... “Ai, Senhor, eu faço jejum toda
quarta-feira e eu não almoço por nada neste mundo do Senhor” , novas
contestações familiares também: “olha sua saúde, isso não tá certo, sua idade
merece uma boa alimentação “ e por aí vai ... Sua resposta foi rápida: “Ai, Senhor... se eu
fizer jejum o Senhor vai me abençoar pra trabalhar”... assim foi... mais um reforço na rotina previamente
instalada, até que um dia a coisa desandou, como disse a própria dona Santana.
Nossa faxineira passou um dia inteiro “sem
pôr nada no estômago, nada desta vida, nem um taquinho assim” e a danada da
pressão baixou fazendo-a cair feio perto da máquina de lavar roupa, ficando muito
brava: “Ai, Senhor, ai minhas costas...” e mais delongas que o meu querido
leitor já deve imaginar.
Dali em
diante a cena era até cômica, eu sem conseguir fazer nada e dona Santana com as
mãos nas costas agora também sem conseguir fazer nada e realmente com um problema na coluna. Alguns dias se passaram e a
situação ficou meio sem jeito, e, “Ai, Senhor”, aí perdi dona Santana.