sexta-feira, 11 de outubro de 2013

AI, SENHOR! (crônica)


Ai, Senhor!


           Quando dona Santana chegou em nossa casa, eu não estava. Foi num momento um tanto dolorido, pode-se assim dizer, pois eu estava no hospital passando por uma cirurgia na coluna lombar e quando saí de lá eu já a encontrei bem inteirada com o serviço em minha casa.

          Era a diarista que viera me auxiliar durante  uns tempos, por  indicação de uma prima, e eu só fui conhecê-la depois do bonde andando, na minha convalescência. E que convalescência! Dor, muita dor. Como diria meu finado pai : “Já era previsto”.  As coisas iam seguindo seu ritmo: eu sem andar e dona Santana lá, trabalhando. Uma senhora de uns sessenta  anos, meio cheiinha, alta, branca, de cabelos longos pintados de preto e sempre enrolados  feito coque, dentes meio pontudinhos para frente fazendo biquinho ao falar,  pessoa de confiança como se diz na linguagem das patroas, no caso eu, compulsoriamente por força da situação. Seu jeito de andar chamava sempre a atenção e não me lembro de um dia sequer não tê-la visto andando com as mão nas costas. Aí me preocupei. Eu daquele jeito e ela também com semelhante problema, pensei, pensei, fiquei com aquilo na  minha cabeça: “E agora?”, até que perguntei se ela sofria de alguma doença na região  lombar e dona Santana, sempre puxando o “r” do falar costumeiro do interior, respondeu que não, que era costume mesmo.

         Tudo ia bem, pelo menos eu achava. Os dias foram passando e cada vez que ela chegava no portão já implicava com o latido da cachorra e a recíproca era verdadeira. Como eu ia dizendo, ela era engraçada, a mesma cena todos os dias, com as mãos nas costas e implicando com a cachorra  a tal ponto que meu dog, como é próprio da raça, usou de seu instinto de defesa e caça: atacou-a por trás mordendo seu calcanhar, a briga era até bonita de se ver  não fosse meu estado. Eu fui ficando numa situação difícil pois tinha que sair da cama com dor para separar a briga de dona Santana com uma poodle toy, já idosa também.

          Lá ia dona Santana: limpava a casa e reclamava da vida toda vez que via alguém se aproximando,  repetindo sempre “Ai, Senhor”. Interessante foi quando ela invocou que tinha que rezar por mim, para curar a minha dor e me recuperar logo,  sair daquele estado, enfim. Só me recordo que foi água benta pra cá, água benta pra lá... e eu tomei tudo, confesso, tudinho, senão ela ficava muito brava.  Acamada eu continuava. 

         Num outro dia ela cismou com meu filho rapaz.  Dizia-lhe  que tinha que “estar com o Senhor”, e falou “Ai, Senhor, você tem que rezar, vou marcar para você ir no retiro de oração, vai ser bom, tem que se abençoar, é só três dias rezando “, como era de se esperar, no dia seguinte trouxe a ficha de inscrição, montou guarda, não deu trégua, e ele foi... “Ai, Senhor”.
       Começamos a perceber que ela não tomava o café da manhã quando chegava para trabalhar, perguntamos o porquê e ela disse que tinha o seu,  não acreditamos mas para nossa surpresa dona Santana carregava uma micro garrafa de café e tomava o seu  às escondidas várias vezes por dia, até hoje não consegui entender  o porquê daquela atitude, mas ...“Ai, Senhor”.  

      Esta senhora trabalhava em várias casas, segundo dona Santana porque se  ficasse em uma só casa se cansria  de ver  as mesmas pessoas todos os dias e também porque  precisava de mais dinheiro, mesmo sendo aposentada e o marido idem, porém, os remédios eram caros, alegava.. Com o tempo passou a chegar mais tarde e  cada vez  mais tarde,  mais  briga com a  cachorra, mais  mãos nas costas e mais  “Ai, Senhor”.  Acontece que quando dava seis horas da tarde ela ficava apavorada por não ter  concluído o   serviço, contudo,  não poderia jamais chegar atrasada para a missa das sete e meia, caso contrário, não seria abençoada para trabalhar no dia seguinte. Compreendemos dado à idade e  blá ... blá...blá... Diante de tanto apavoramento, alguém sempre a levava  de carro até a igreja que ficava próxima a sua casa, e é lógico, ela  com o dinheiro da passagem de volta pago e  dentro da bolsa... “Ai, Senhor”.

                   O tempo foi passando e a rotina da dona Santana também.  Foi ficando divertido. Não nos incomodávamos mais. No entanto, surpresa maior aconteceu quando ela pediu para trocar o dia da faxina para toda quarta –feira. Pedido aceito, de “comum acordo de ambas as duas partes entre as duas pessoas conforme o combinado”,  disse dona Santana. Começamos a perceber que novamente à mesa ela não nos acompanhava, no café da manhã  já havíamos compreendido, mas  durante o almoço?!!  Novas investigações...novas perguntas...  novas surpresas... “Ai, Senhor, eu faço jejum toda quarta-feira e eu não almoço por nada neste mundo do Senhor” , novas contestações familiares também: “olha sua saúde, isso não tá certo, sua idade merece uma boa alimentação “ e por aí vai ...  Sua resposta foi rápida: “Ai, Senhor... se eu fizer jejum o Senhor vai me abençoar pra trabalhar”... assim foi...  mais um reforço na rotina previamente instalada, até que um dia a coisa desandou, como disse a própria dona Santana. Nossa faxineira passou um dia inteiro  “sem pôr nada no estômago, nada desta vida, nem um taquinho assim” e a danada da pressão baixou fazendo-a cair feio perto da máquina de lavar roupa, ficando muito brava: “Ai, Senhor, ai minhas costas...” e mais delongas que o meu querido leitor já deve imaginar.

                Dali em diante a cena era até cômica, eu sem conseguir fazer nada e dona Santana com as mãos nas costas agora também sem conseguir fazer nada  e realmente com um problema  na coluna. Alguns dias se passaram e a situação ficou meio sem jeito, e, “Ai, Senhor”, aí perdi dona Santana.






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